terça-feira, 20 de novembro de 2012

Putrefacção

Sorvi a saliva
como gotas de orvalho,
palavras que conspurquei
pelo simples facto de as proferir.
E as perguntas flutuam
leves
e incrivelmente pesadas
afundando-se em repulsa,
belas e quase intactas.
E vai já tão longe a putrefacção.
O visitar dos fantasmas antigos
adormecidos em líquido amniótico,
mexer-lhes nas entranhas,
senti-los por dentro
a revolverem os órgãos
quase dormentes,
em murros nostálgicos
de alegria e excitação
de outros tempos.
Mas não quis o criador
que a placenta fosse a minha.
E agora,
agora a imensidão do nada,
onde me perco e construo
parecendo que me encontro.


segunda-feira, 5 de novembro de 2012

A roupa que ficava

Por mais banho que tomasse cheirava sempre a sujo. Houve um tempo em que guardava roupa cá em casa, para quando viesse. Um pouco de tudo, que ia ficando com o passar do tempo. Três pares de meias, uma camisola de manga comprida, uma de manga curta, umas calças de fato de treino. Até mesmo uns pares de cuecas, encontradas algum tempo depois no fim da cama, enroladas no meio dos lençóis. Tudo limpo e guardado, em casa. Na minha, na dele, nas nossas. As nossas coisas. Até que chegou o dia em que quase sem darmos por isso recusámos a intimidade um ao outro. A roupa interior foi lavada e devolvida. O até já foi um adeus, quase como que a dizer: "Esta casa não é tua". Ficou a carapaça e o cheiro a flores secas, que não chegaram sequer a ser belas. Foram o lirismo, a fragilidade, a beleza desejada sem sumo nem vida. Como nós, mortos por dentro sem nos querermos aperceber da nossa putrefacção.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Tempo

A beleza grotesca do teu estômago nu
em completa distenção
e o cheiro insuportável a borracha queimada
que me perfurou as entranhas
perturba-me o sono.
A pureza enjoativa do teu sorriso primaveril
espelhado em cada canto
dessa falsa nudez adolescente,
tão rude como bela
qual a inocência reminiscente
nas profundezas do que fui,
agora aborto estéril de olhos arregalados.

E o que em mim se faz curto
e que em ti se prolonga
em nós não é mais do que nada
ou sequer a estrada corrida por outros,
nem o espaço que galga
de cá para lá incessantemente.
Nem o teu corpo ou o meu.
Nem mesmo o nosso
que se perde no tempo
e se encontra algures
sem saber como nem porquê.

sábado, 13 de outubro de 2012

Casas

O som que as garrafas partidas
fazem nos meus pés descalços
assemelha-se vagamente
aos meus lábios inchados
que incessantemente
jorram sangue na calçada.
E nas escadas
os degraus continuam tortos
e encavalitados.

E é essa imensidão
que nos transtorna e engole
que inflige chagas profundas
que um dia nos deixarão
cair no esquecimento
para nos juntarmos
aos outros nós.

Impulsos tão fortes
sem a repulsa que gostaria de ter
na minha alma de luto
de animal ou mulher
ou nada absoluto
como havia prometido
e aprendido com ele.

Mas se fico e aceito
que o vidro que pisei
ou as varas secas de betão,
eram no fundo verdes campos
onde crianças brincavam
não tenho outra solução
senão a de partir para outra casa
sem reminiscências do passado
nem saudades do futuro.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Acordei com vontade de vomitar

Acordei com vontade de vomitar. Lisboa está espectacularmente feia hoje, há lixo por todo o lado e o cheiro nauseabundo, quase adocicado, é acentuado pelo calor que se faz sentir. Cá dentro também cheira mal, não sei se dos bancos se das pessoas.
O condutor do autocarro insiste em estalar os dedos a um ritmo irritante; entra um pica com um anel gordo no dedo mindinho, depois outros três. Um maluco qualquer grita "Há quatro chulos no autocarro!". Entretanto a mulher que está agarrada ao varão ao lado do meu banco não pára de mastigar pastilha elástica, tem o cabelo pintado de loiro quase palha, com raízes pretas e brancas, um top verde alface e calças de ganga descaídas, os 50 anos de pele saem por todo o lado; consigo ouvir o colar e descolar do cuspo na boca dela. Entra um aleijado que nem é capaz de pôr-se de pé, anda agachado, com as mãos a agarrar os pés, obrigando-os a mexer.
Lá fora, prédios descascados, uns em construção, outros em ruínas. É engraçado como as coisas funcionam. E eu que me sentei, como sempre, no banco da frente, para ver as coisas e as pessoas entrarem...e para depois deixar de as ver. Mas depois penso...ainda bem que há coisas tão feias. Sobre as bonitas já está tudo escrito.

sábado, 9 de junho de 2012

Sem Título

Subitamente as copas das árvores e as nuvens pareceram-me montanhas cobertas de neve. Eu, tal como tu, nunca existi, apenas em sonhos. Lembras-te de passearmos de mão dada no meio do nada, naquele espaço em branco entre a praça deserta e a guerra de lama na outra ponta da casa, de pintarmos os nossos corpos e de vermos a tinta a derreter lentamente no sol do meio-dia, do sal nos nossos lábios cheios de feridas abertas, de tão secos que estavam? Eu também não.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Já não me importo com gritos

Já não me importo com gritos
nem com lençóis sujos,
os meus cabelos não são lavados
vai já para dez dias
e os meus pés encardidos
parecem não incomodar
os pingos de sangue seco no chão.
Não te oiço
nem te cheiro
nem te sinto
e as noites que são só minhas
e das minhas masturbações
serão apenas ecos de fantasias
até ao dia em que eu me cansar
da falta de odores corporais.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Um dia sonhei que morria

Um dia sonhei que morria

e para que voasse livremente
até aos confins do nada
como eu sempre desejei
tive que fazer o pino.

As minhas mãos
penetraram docemente o alcatrão
ainda molhado
mas como nunca fui
nem serei
uma grande equilibrista,
em vez da alma pelos pés
saiu-me vómito da garganta

e nem sequer me afoguei.

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Enquanto

Sou aranha equilibrista,
presa entre sonhos de odalisca
e desejos mais banais.
E enquanto andas perdido e mudo,
quando a culpa é só minha,
corro alegremente pelos campos
desfolhando outros arbustos
e descascando avelãs.
Mas nada terá sido em vão.
Se não és nem serás nunca
meu corrimão
outros certamente acolherão
com toda a pompa e circunstância
a abençoada graça
da minha triste presença,
por mais breve que seja
nos degraus de alguém.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Vou-me assim

Vou-me assim
de forma estranha
como a absurdez das pedras da calçada
que se questionam sobre o porquê
do irromper lento e vagaroso
das árvores na cidade.
Não sou daqui.
Canso-me
e desfaço-me em cansaço.
Estou já comatosa
mas de tão cansada
prefiro partir amanhã.

sábado, 31 de março de 2012

As Flores

A virgindade umbilical deste silêncio
é purificado apenas por bafejos de morte
suaves e molhados
como eu já fui um dia.

E agora manca amputada
coxa pelas minhas próprias palavras
vou saltitando de mansinho
esvoaçando rente ao chão
qual mariposa cansada
esmagada contra qualquer mão.

E as flores já não me cheiram a delírio.

Orquídeas

Abades tarados
pervertidos por flores,
trigos alucinogénos
coisas raras, fluidos sagrados
embebidos em letras
perfeitamente coaguladas
tal qual o sangue
que te entupiu nas veias.

Venenos vis
de mil e um efeitos
estranhas alquimias
nas mãos de idosos raquíticos.

Nova Sodoma nos teus polegares,
lugares visitados em terra de reis.
O cheiro ocre das velas,
cera presa nos teus poros mal fechados
pela minha água sagrada,
telas pintadas às escuras.

Mas qualquer coisa em nós
me cheira a bafio.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

A Puta

A puta,
enfrascada em litros
do vinho mais barato,
refinada formosura
entre os seus refegos imundos
desde os seios descaídos
aos recantos profundos
dos buracos negros
que guarda carinhosamente
para si e toda a gente.

O fantasma omnipresente
de olhos despertos
esbugalhados e apaixonantes
chora álcool e sais,
saem fluxos corporais
leites azedos e outros que tais
reflectindo a redonda figura
no chão sujo da cozinha.

Na tempestade que se avizinha,
puta astuta,
fera gorda de estranhos costumes...
Lábios vermelhos e inchados
constantemente humedecidos.
Como brilha a puta amada,
sempre a mais amargurada
de tentáculos erectos
e rectos princípios
quebrados por ela apenas.

Glória, glória
dos nossos tempos,
veias fracas venenosas...
contento de homens e mulheres perdidas,
como te quereríamos provar
não estivesses tu já murcha
e tão mal e porcamente
fodida.

O meu amor piramidal

O meu amor piramidal
de papel e cartão
ora pairando em nuvens brancas
ora espalhado pelo chão.

Encontro-me nas tuas pernas descarnadas
e sinto os ouvidos entupidos
com sangue coagulado
pelos meus próprios silêncios enigmáticos
que com beijos asmáticos tentas contrariar.

Mas depois de tudo,
desejos flutuantes e instintos animais
somos os mesmos chacais que antes
com dentes afiados,
assassinos sem descanso
com inseguranças de gente grande.

E só tu,
mesmo sem vinhos ou fumos
fazes com que me perca
sem outro sabor
ou outra tela
que não o teu semén
elegantemente distribuído
pelos pequenos seios
que não ousas maltratar.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Mentiras

Escrevo cartas e poemas
teço esquemas escondidos
na minha cabeça doente
para me provar errada.
Os meus sentimentos
passageiros,
os meus poemas
mentirosos
e as minhas ideias
inconcebíveis
para alguém que não eu.
Mas divirto-me
com as minhas mentiras
e minto tão bem
que me creio verdadeira
e por mais que queira
a brincadeira não tem fim.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

É tão bom saber que choras

É tão bom saber que choras,
que tens tremores e suores
nas noites vagarosas
em que me lembro
que não sou nada mais
do que a lembrança
de um passado distante
vivido em horas erradas.

É bom saber que na matança
te terei sempre ao meu lado,
triste palhaço consolado
que viajas ziguezagueando
pelos recantos desta história.

Como dá gosto o teu abraço
e o teu cheiro a carne fresca
que sinto nas minhas entranhas,
a tua espada no meu ventre.

E o meu desejo
outrora ardente
perde-se em estranhos ideais
e fôssemos nós criaturas banais
já te terias extinguido
nas profundezas destas linhas
que por mais que te doa
nunca terão traços iguais.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Leite

Se me visses esta noite
entre os ventos fortes e a melancolia
saberias com certeza
que no correr das horas certas
deste dia luminoso
o meu peito foi deserto
e aguardente  nos teus sonhos.

Que os olhos
cujas lágrimas lambeste
de forma tão doce e doente
não vêem outros marinheiros
ou outras velas que não tuas,
nem me levantam outras gruas
ou sabem caminhos de grutas
línguas alheias aos poemas.

Se me visses meu amor
de caracóis despenteados
baços e mal lavados,
de olheiras fundas
e pupilas dilatadas
boca seca e lábios gretados...

Se me visses esta noite
saberias com certeza
que a minha pureza
pode apenas ser saciada
pelo meu leito partilhado
com o teu leite nos meus seios
e o meu peito ocupado
pelas tuas mãos geladas
e pela memória do deserto
esquecida no aperto
de uma noite que não esta.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Antigamente via cores

Antigamente via cores,
via vidas noutras asas,
antigamente era tão fácil
caminhar pela calçada.

Mas o vento levou tudo,
até o branco dos lençóis,
corrompeu o meu perfume
e corrói em brandos lumes
os nossos ritos e costumes
entre opacos fumos
à beira de outros faróis.

Fomos ursos gambuzinos,
braços fortes e desmaios,
fomos casa, fomos inhos
fomos seres equilibrados.

Mas a pele que tu tocaste
de marfim ficou papel
com letras carbonizadas,
entraram barcos nos meus portos
somente por ti achados.

O meu riso é aguardente
os meus lábios brotam sangue,
faz um ano e alguns meses
em profunda convulsão
que uma infinidade de vezes
tento adormecer em vão.

Mas o salvador morreu
com uma facada profunda
em agonia apenas minha,
alegre viúva consolada,
e nem rosas ou morfina
me fazem esquecer o dia
em que a minha má pontaria
matou a criatura errada.