domingo, 24 de fevereiro de 2013

A morte de Vénus


Tudo é estranho neste momento. O pesadelo que tive, sentir as mãos dele no meu pescoço enquanto me beijava, como só ele sabia aliás. Às vezes ainda acordo com ele ao lado, a sussurrar-me ao ouvido como nunca voltarei a ser feliz. E como sempre, um beijo de bom dia, que bom é estar quente. Lembras-te, disse-me, lembras-te de como nos sentíamos constantemente à beira da morte, dos murros contra a parede. Nunca há paz nesta casa, continuou, o amor não é assim. Talvez não te ame, disse eu, talvez sempre tenhas tido razão e sejas fruto do acaso e da curiosidade, talvez seja como dizes e não tenhas passado de uma fonte interminável de poemas. Talvez, continuei, a tua dor sejam as minhas palavras; já te disse que deixei de sentir. Não sentes nada? Não, por isso é que me toco, adormeceste-me a alma, chupaste-me a juventude. E eu esgotei-te até ao poema mais doloroso, até deixar de saber como te magoar.

Foi a cegueira. Tudo é uma névoa imensa que vejo e que sinto, que me envolve. Estarei já eu tão imersa na miragem que se tornou em paisagem de verdade? Não sinto a neblina em dias assim. Consegues sentir-me? Achas que estou mesmo aqui, agora? Ainda te apetece dançar? E fazer amor comigo? Não digo aqui e agora, digo para sempre, quando tiver as veias azuis e salientes, e os pés inchados e frios. És fria, disse ele, sempre foste; agora também sou. Mas tens os lírios, dei-te lírios o ano passado, disseste que gostavas do cheiro. Eu sei, disse eu, pendurei-os de cabeça para baixo como me disseste, perderam o cheiro; eu também perdi o cheiro. Tudo me cheira a cinzento. Foi por isso que lhe deste a mão? Não me lembro, não estavas lá, tive medo que me batesses; eras tu ao contrário. Gostava quando me tratavas como uma criança, quando me ajudavas a vestir o pijama e me davas banho, não tinhas maldade, não eras um homem. E o que era eu se não era homem? Não sei, outra coisa qualquer, eras o extraordinário. Perdi-o? Perdeste, acho que o perdi contigo, obriguei-te a isso. Já não és extraordinário, és homem. E sabes bem que não gosto de pessoas. Deixei de me interessar pelo extraordinário no dia em que te deixei.

O meu corpo flutua agora no espaço, bem longe de mim, a mirar-me de cima como um fantasma. Não sei já se sou quem observa ou quem é observada, a de cima ou a de baixo. O verme ou o espírito. Chamavam-me Vénus quando tinha o cabelo comprido. Eram eles que ora me amarravam ao chão, ora me levavam pelo ar. Vénus morreu e estou em paz, não corre vento nesta maldita terra.

1 comentário:

  1. Adorei ler alguns dos teus poemas e especialmente, este texto! Também adoro escrever poesia, ou melhor, também adoro escrever! Muito bom! Parabéns!

    ResponderEliminar