sábado, 20 de agosto de 2016

Regresso


Começa assim,
com as minhas mil mortes e mais uma
entre chocolates e cravos caídos,
o fim de outro mundo perdido em tantos
sem tempo para prantos nem lembranças.

Mas no momento de apertar a tua mão pálida
a tremer gemidos de ressurreição
quis a razão ou a esperança
que eu fosse engolida sem perdão
e fizesse das minhas mágoas prazeres.

Passeio o cadáver pela cidade,
agora necrópole crepitante
descarnando a cada passo
a agonia balbuciante
da saudade do teu abraço.
Levo ainda no regaço aconchegado
o cheiro a cabelo suado
que me deixaste nos lençóis
e os teus olhos feitos faróis
fixos na catarse do reencontro
humedecidos pelo luto iminente.

E afogo
nas águas escuras da ambivalência
a minha preferência pelo desvario
e a inevitabilidade da revolução
com o sufoco na garganta
de quem não canta por embaraço
e se enrola vezes sem fim
nas ondas frias da dormência e do cansaço
espumando a minha perpétua insatisfação.





sábado, 28 de maio de 2016

Untitled (Denmark)

Opening: “tyranny leaves the body free and directs its attack at the soul. The ruler no longer says: You must think as I do or die. He says: You are free not to think as I do; your life, your property, everything shall remain yours, but from this day on you are a stranger among us.” Alexis de Tocqueville

There used to be a time
When I was naïve as to believe
That words and rhymes
And glasses of over-priced wine
Could make me one of you.
But the failure at integration
Ruined the delicacy of that moment
And as my frustration rose to the ceiling
So did my appetite for destruction.

So tell me
Can your mouth also taste the blood of innocents
when you do us the diligence of waving your flag in our faces
and present us endless mazes mystifying your mundane?
Can you also feel our desperate pain
When you strip us to the bone
And turn us into naked canvas for your twisted little games?

You should be proud, you did the system good
And the loud ghosts of what we used to be,
Ripped from our bodies like our childhood
with gentle melodies about losses and gains unkept,
Will never again attempt happiness beyond contempt.

And you continue to charm us all
With your timeless pretty pieces
about loves you used to have
asking the same metaphysical questions
and begging for redemption with overused vane lines
in a masturbatory circus
spreading meaningless fungus like toxic lice,
jumping from head to head
not thinking twice about the self-indulging pettiness
of your ill-fitted disguise.
But vanilla candles cannot hide
the sick smell of soulless poems
like inorganic rancid corpses
decomposing under the sun of your lovely Danish porches.

When you instruct me in your wisdom,
and seduce me with your boredom
Go beyond the rain and the spring flowers
and tell me more about the hours
spent by overdosing clones
riding gaily in monochrome.
Tell me about your synthetic happiness of pills and booze
or how you think we are all over-sensitive crooks;
How my love is OCD and my passion is anxiety
and how there’s no space in your society
for anything but your fake smiles and sarcasm.

But I will scream and I will spasm

Until I am a person again.

sábado, 24 de agosto de 2013

Sopa de Cavalo Cansado

que a minha cara faça sentir velhos navegantes
primeiros violadores das minhas falsas virtudes

o cheiro a mofo na penugem bolorenta
tem qualquer coisa de menina

mas o cansaço da carne tem espinhas pontiagudas
arbustos sangrentos, raivosos

e os jacarandás sempre me cheiraram a mijo

tenho os pés fora da cama
vamos mudar de roupa e fingir que é outro dia


segunda-feira, 1 de julho de 2013

Nunca cheira a carne na minha rua

Nunca cheira a carne na minha rua.

O apodrecimento gradual
do sítio a que um dia chamámos
ou gostaríamos de ter chamado
casa
é agora um barracão decrépito
a cair
telha a telha
tijolo a tijolo
pestana a pestana
ficando apenas o pó
dos cantos indiscretos
que nunca pensámos
tornar-se tão visível.

A nudez grotesca
embora irrepreensível
revolve-nos as entranhas
num jogo macabro
de luz e sombra.

O nosso corpo
mais um vulto sem reflexo
mais uma carcaça
depósito de coisas passadas
vazias
levadas pelo tempo.

Restos.

Restos de coisa nenhuma.
E a nossa rua?
E a nossa casa?
Nem pegadas
nem ruínas.
O vento levou-nos.

domingo, 19 de maio de 2013

Morreram os cânticos de liberdade


Os cães ladram e a caravana passa
abafando  o desconforto
e os ruídos da desgraça .
Não há praias nem bandeiras,
mantras por montras,
cegueiras em vão.

Nem cravos
nem foices nem machados
futuros ensaiados
ou glórias inventadas
de pessoas distantes.
Nem heróis galopantes
manchados a sangue ou suor
nem velhos estudiosos
ou novos românticos.

Morreram os cânticos de liberdade.

O conforto do lar feito prisão
as persianas fechadas
os punhos vencidos pelo cansaço
as frescas pétalas de outrora
palha de aço, a areia feita alcatrão.
As janelas do mundo
entre quatro paredes
florestas de betão.

A sofreguidão de não sentir desejo algum.
Nem a pureza
ou a suposta leveza da juventude

E tudo se repete
numa canção tão insuportável como imperceptível.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Narciso

Saio da água
com os dedos enrugados
e a alma suja,
o ventre cheio
de coisa nenhuma
e poças nas palmas furadas.

Nem palavras nem gritos
nem sequer ruídos
ou silêncio,
só eu
Narciso enamorado
deambulando com os pés atados
por histórias inacabadas
reais ou inventadas

investidas inúteis
dos meus desejos fúteis
reflectidos na água turva
que me escorre
como enguia
do indicador e do médio
sem vergonha
nem companhia.

E quantas comichões
e infecções curadas
com doenças libertinas.
Outros tempos.
Entropias distópicas
pérfidas e animais.
Mas nunca mais do que eu.

Vê como se riem de nós
de rosas brancas cravadas nas mãos
pombas no lugar de sangue
asas cortadas pelo vento,
penas no meu caixão.

Já não me pertence
a dor ou a doçura deste abraço
e de que vale o cansaço
e as tendinites
se foi em mim
que se afogou a fugaz Afrodite
já sem mágoas
nem água
por onde beber.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

A morte de Vénus


Tudo é estranho neste momento. O pesadelo que tive, sentir as mãos dele no meu pescoço enquanto me beijava, como só ele sabia aliás. Às vezes ainda acordo com ele ao lado, a sussurrar-me ao ouvido como nunca voltarei a ser feliz. E como sempre, um beijo de bom dia, que bom é estar quente. Lembras-te, disse-me, lembras-te de como nos sentíamos constantemente à beira da morte, dos murros contra a parede. Nunca há paz nesta casa, continuou, o amor não é assim. Talvez não te ame, disse eu, talvez sempre tenhas tido razão e sejas fruto do acaso e da curiosidade, talvez seja como dizes e não tenhas passado de uma fonte interminável de poemas. Talvez, continuei, a tua dor sejam as minhas palavras; já te disse que deixei de sentir. Não sentes nada? Não, por isso é que me toco, adormeceste-me a alma, chupaste-me a juventude. E eu esgotei-te até ao poema mais doloroso, até deixar de saber como te magoar.

Foi a cegueira. Tudo é uma névoa imensa que vejo e que sinto, que me envolve. Estarei já eu tão imersa na miragem que se tornou em paisagem de verdade? Não sinto a neblina em dias assim. Consegues sentir-me? Achas que estou mesmo aqui, agora? Ainda te apetece dançar? E fazer amor comigo? Não digo aqui e agora, digo para sempre, quando tiver as veias azuis e salientes, e os pés inchados e frios. És fria, disse ele, sempre foste; agora também sou. Mas tens os lírios, dei-te lírios o ano passado, disseste que gostavas do cheiro. Eu sei, disse eu, pendurei-os de cabeça para baixo como me disseste, perderam o cheiro; eu também perdi o cheiro. Tudo me cheira a cinzento. Foi por isso que lhe deste a mão? Não me lembro, não estavas lá, tive medo que me batesses; eras tu ao contrário. Gostava quando me tratavas como uma criança, quando me ajudavas a vestir o pijama e me davas banho, não tinhas maldade, não eras um homem. E o que era eu se não era homem? Não sei, outra coisa qualquer, eras o extraordinário. Perdi-o? Perdeste, acho que o perdi contigo, obriguei-te a isso. Já não és extraordinário, és homem. E sabes bem que não gosto de pessoas. Deixei de me interessar pelo extraordinário no dia em que te deixei.

O meu corpo flutua agora no espaço, bem longe de mim, a mirar-me de cima como um fantasma. Não sei já se sou quem observa ou quem é observada, a de cima ou a de baixo. O verme ou o espírito. Chamavam-me Vénus quando tinha o cabelo comprido. Eram eles que ora me amarravam ao chão, ora me levavam pelo ar. Vénus morreu e estou em paz, não corre vento nesta maldita terra.