sábado, 24 de agosto de 2013

Sopa de Cavalo Cansado

que a minha cara faça sentir velhos navegantes
primeiros violadores das minhas falsas virtudes

o cheiro a mofo na penugem bolorenta
tem qualquer coisa de menina

mas o cansaço da carne tem espinhas pontiagudas
arbustos sangrentos, raivosos

e os jacarandás sempre me cheiraram a mijo

tenho os pés fora da cama
vamos mudar de roupa e fingir que é outro dia


segunda-feira, 1 de julho de 2013

Nunca cheira a carne na minha rua

Nunca cheira a carne na minha rua.

O apodrecimento gradual
do sítio a que um dia chamámos
ou gostaríamos de ter chamado
casa
é agora um barracão decrépito
a cair
telha a telha
tijolo a tijolo
pestana a pestana
ficando apenas o pó
dos cantos indiscretos
que nunca pensámos
tornar-se tão visível.

A nudez grotesca
embora irrepreensível
revolve-nos as entranhas
num jogo macabro
de luz e sombra.

O nosso corpo
mais um vulto sem reflexo
mais uma carcaça
depósito de coisas passadas
vazias
levadas pelo tempo.

Restos.

Restos de coisa nenhuma.
E a nossa rua?
E a nossa casa?
Nem pegadas
nem ruínas.
O vento levou-nos.

domingo, 19 de maio de 2013

Morreram os cânticos de liberdade


Os cães ladram e a caravana passa
abafando  o desconforto
e os ruídos da desgraça .
Não há praias nem bandeiras,
mantras por montras,
cegueiras em vão.

Nem cravos
nem foices nem machados
futuros ensaiados
ou glórias inventadas
de pessoas distantes.
Nem heróis galopantes
manchados a sangue ou suor
nem velhos estudiosos
ou novos românticos.

Morreram os cânticos de liberdade.

O conforto do lar feito prisão
as persianas fechadas
os punhos vencidos pelo cansaço
as frescas pétalas de outrora
palha de aço, a areia feita alcatrão.
As janelas do mundo
entre quatro paredes
florestas de betão.

A sofreguidão de não sentir desejo algum.
Nem a pureza
ou a suposta leveza da juventude

E tudo se repete
numa canção tão insuportável como imperceptível.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Narciso

Saio da água
com os dedos enrugados
e a alma suja,
o ventre cheio
de coisa nenhuma
e poças nas palmas furadas.

Nem palavras nem gritos
nem sequer ruídos
ou silêncio,
só eu
Narciso enamorado
deambulando com os pés atados
por histórias inacabadas
reais ou inventadas

investidas inúteis
dos meus desejos fúteis
reflectidos na água turva
que me escorre
como enguia
do indicador e do médio
sem vergonha
nem companhia.

E quantas comichões
e infecções curadas
com doenças libertinas.
Outros tempos.
Entropias distópicas
pérfidas e animais.
Mas nunca mais do que eu.

Vê como se riem de nós
de rosas brancas cravadas nas mãos
pombas no lugar de sangue
asas cortadas pelo vento,
penas no meu caixão.

Já não me pertence
a dor ou a doçura deste abraço
e de que vale o cansaço
e as tendinites
se foi em mim
que se afogou a fugaz Afrodite
já sem mágoas
nem água
por onde beber.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

A morte de Vénus


Tudo é estranho neste momento. O pesadelo que tive, sentir as mãos dele no meu pescoço enquanto me beijava, como só ele sabia aliás. Às vezes ainda acordo com ele ao lado, a sussurrar-me ao ouvido como nunca voltarei a ser feliz. E como sempre, um beijo de bom dia, que bom é estar quente. Lembras-te, disse-me, lembras-te de como nos sentíamos constantemente à beira da morte, dos murros contra a parede. Nunca há paz nesta casa, continuou, o amor não é assim. Talvez não te ame, disse eu, talvez sempre tenhas tido razão e sejas fruto do acaso e da curiosidade, talvez seja como dizes e não tenhas passado de uma fonte interminável de poemas. Talvez, continuei, a tua dor sejam as minhas palavras; já te disse que deixei de sentir. Não sentes nada? Não, por isso é que me toco, adormeceste-me a alma, chupaste-me a juventude. E eu esgotei-te até ao poema mais doloroso, até deixar de saber como te magoar.

Foi a cegueira. Tudo é uma névoa imensa que vejo e que sinto, que me envolve. Estarei já eu tão imersa na miragem que se tornou em paisagem de verdade? Não sinto a neblina em dias assim. Consegues sentir-me? Achas que estou mesmo aqui, agora? Ainda te apetece dançar? E fazer amor comigo? Não digo aqui e agora, digo para sempre, quando tiver as veias azuis e salientes, e os pés inchados e frios. És fria, disse ele, sempre foste; agora também sou. Mas tens os lírios, dei-te lírios o ano passado, disseste que gostavas do cheiro. Eu sei, disse eu, pendurei-os de cabeça para baixo como me disseste, perderam o cheiro; eu também perdi o cheiro. Tudo me cheira a cinzento. Foi por isso que lhe deste a mão? Não me lembro, não estavas lá, tive medo que me batesses; eras tu ao contrário. Gostava quando me tratavas como uma criança, quando me ajudavas a vestir o pijama e me davas banho, não tinhas maldade, não eras um homem. E o que era eu se não era homem? Não sei, outra coisa qualquer, eras o extraordinário. Perdi-o? Perdeste, acho que o perdi contigo, obriguei-te a isso. Já não és extraordinário, és homem. E sabes bem que não gosto de pessoas. Deixei de me interessar pelo extraordinário no dia em que te deixei.

O meu corpo flutua agora no espaço, bem longe de mim, a mirar-me de cima como um fantasma. Não sei já se sou quem observa ou quem é observada, a de cima ou a de baixo. O verme ou o espírito. Chamavam-me Vénus quando tinha o cabelo comprido. Eram eles que ora me amarravam ao chão, ora me levavam pelo ar. Vénus morreu e estou em paz, não corre vento nesta maldita terra.

domingo, 27 de janeiro de 2013

Magenta

O tempo passa
corre
escorre-me pelas mãos
escasseia
e cai no no chão
nas gretas que abri
nas fendas
de madeira maciça
que ninguém gosta
ou gosta de admitir
gostar de imitações.

Lembra-me outra vez
como foi que partimos
em dois
e estilhaçámos depois
em ínfimos pedaços
a virgindade de aço
prometida
em plena erecção.

Se eram tuas
as histórias
e os sermões
que me pregavas
os murros
que não tão secretamente
desejavas
ver explodir
no meu corpo.

Eu
que sempre tive a pele sensível
quão terrível seria
deixar marca.
O que diriam os outros.
Certamente
que a escuridão do magenta
realça o azul dos meus olhos.

E que
mal por mal
e como nunca usei relógio
poderei ter o prazer
de ver a nódoa esbater
e o tempo passar
para que da próxima vez
se houver uma próxima vez
me possa queixar
com ardor e razão
das saudades que tinha
e da falta que fazia
ter um sítio onde doer.


segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Fosse eu outra coisa


Fosse eu outra coisa.
Tivesse eu outro corpo
ou não tivesse corpo de todo.
O absoluto da alma,
a alma em absoluto
colada ao tecto
poderia pingar confortavelmente
levemente
no tapete de arraiolos.
Não tivesse eu voz
nem mãos
e seria pura finalmente
esta constante sensação
de ódio e desprazer.
Seria normal a indiferença
e a doença crónica
de sonhar desnecessariamente.
Com a carne e o cabelo
pintei a porta manca
e imprimi fundo na madeira branca
o sangue dos meus lábios
na acidez do mergulho
finalmente feita cinza
para a caruma me dizer
que a minha porta não tem trinco
nem sou eu esta outra coisa.